sábado, 31 de agosto de 2013

As conspirações de José Serra


“Serra não se constrange em liderar uma espécie de guerrilha entre tucanos, conspira contra a própria legenda e parece não se importar caso sua teimosia leve a uma implosão do PSDB”, afirma Istoé

Isto é


As derrotas nas eleições presidenciais de 2002 e 2010 e na disputa pela Prefeitura de São Paulo no ano passado não reduziram o insaciável apetite político de José Serra. Os movimentos feitos por ele nas últimas semanas mostram que o ex-governador tucano não engole a possibilidade de o PSDB ter um candidato à Presidência da República que não seja ele mesmo. Para realizar seu desejo, Serra não se constrange em liderar uma espécie de guerrilha entre tucanos, conspira contra a própria legenda e parece não se importar caso sua teimosia leve a uma implosão do PSDB.
Sem o apoio dos principais líderes do partido, visto com antipatia pelos militantes e ainda forçado a permanecer na legenda pelos poucos correligionários que o cercam, o ex-governador paulista tenta agora boicotar a estratégia que o partido, sob a liderança do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, traçou para a candidatura do senador mineiro Aécio Neves. Um projeto tucano que estava em pauta desde 2010, mas que na ocasião foi contido exatamente para atender à ambição do ex-governador e evitar um racha.
Há duas semanas, Serra começou a fazer contatos com diversos deputados e vereadores do partido em São Paulo, onde ainda mantém alguma influência. Iniciou as conversas deixando claro que poderia abandonar o PSDB e disputar a Presidência da República pelo PPS – uma hipótese que aterroriza os tucanos de São Paulo, pois visualizam nela a possibilidade de divisão do partido no Estado, com consequências diretas na sucessão estadual. Em seguida, Serra sugeriu a alguns parlamentares que não participassem das reuniões agendadas por Aécio no interior do Estado. Desde maio, quando assumiu a presidência nacional do PSDB, Aécio vem trabalhando uma agenda que contempla uma série de viagens pelo País, com o propósito de unificar o partido e buscar a construção de palanques regionais para a sua candidatura. “Vamos discutir com Aécio a ativação das redes sociais e um calendário de encontros regionais. Isso está previsto no planejamento estratégico do PSDB”, teria respondido o presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, Samuel Moreira.
A conspiração de Serra aparentemente não deu resultado. Aécio passou parte da semana passada em São Paulo mantendo diversos contatos políticos. Na noite da sexta-feira 23, por exemplo, o mineiro se reuniu com lideranças políticas de Ribeirão Preto e tinha confirmada a participação na Festa do Peão de Barretos, o maior rodeio do Brasil, no sábado 24. “O candidato do PSDB é o senador Aécio Neves (MG). Isso já está definido. Serra teve todas as chances possíveis e a fila andou. Agora ele precisa deixar de fazer espuma, pois o nosso problema é ganhar a opinião pública, o que não está fácil”, diz o deputado pernambucano Sérgio Guerra, ex-presidente nacional do partido e presidente do Instituto Teotônio Vilela. “Estamos trabalhando muito para desenhar uma proposta ao País e não podemos perder tempo com essas rusgas”, completou.
As pegadas recentes do cartel
Diante das contundentes provas de que as empresas da área de transporte sobre trilhos desviaram quase meio bilhão de reais no esquema do Metrô, o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) correm contra o tempo para apurar se as irregularidades persistem nos contratos ainda em vigor. O objetivo é encerrar o quanto antes a sangria aos cofres públicos. Na última semana, o TCE anunciou que fará um pente-fino sobre acordos celebrados recentemente entre as companhias integrantes do cartel e o governo paulista. Para integrantes do MP e do TCE, há fortes indícios de que as fraudes ocorreram em contratos em curso, assinados pelo ex-governador José Serra (2007-2010) e pelo atual governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Entre eles estão os acordos para a reforma de trens das Linhas 1 (Azul) e 3 (Vermelha) do Metrô paulista, celebrados em 2008 e 2009. Com duração de cinco anos e meio e valores que somados superaram R$ 1,7 bilhão, os serviços foram divididos entre consórcios formados pelas empresas participantes do cartel. Até a denunciante do esquema, a Siemens, faz parte do projeto. Também integram o consórcio as empresas Alstom, Iesa, Bombardier, Tejofran, Temoinsa, TTrans e MPE, contratadas para reformar 98 trens.
A conta secreta do propinoduto
Na edição da semana passada, ISTOÉ revelou quem eram as autoridades e os servidores públicos que participaram do esquema de cartel do Metrô em São Paulo, distribuíram a propina e desviaram recursos para campanhas tucanas, como operavam e quais eram suas relações com os políticos do PSDB paulista.
Agora, com base numa pilha de documentos que o Ministério da Justiça recebeu das autoridades suíças com informações financeiras e quebras de sigilo bancário, já é possível saber detalhes do que os investigadores avaliam ser uma das principais contas usadas para abastecer o propinoduto tucano. De acordo com a documentação obtida com exclusividade por ISTOÉ, a até agora desconhecida “conta Marília”, aberta no Multi Commercial Bank, hoje Leumi Private Bank AG, sob o número 18.626, movimentou apenas entre 1998 e 2002 mais de 20 milhões de euros, o equivalente a R$ 64 milhões. O dinheiro é originário de um complexo circuito financeiro que envolve offshores, gestores de investimento e lobistas.
Uma análise preliminar da movimentação da “conta Marília” indica que Alstom e Siemens partilharam do mesmo esquema de suborno para conseguir contratos bilionários com sucessivos governos tucanos em São Paulo. Segundo fontes do Ministério Público, entre os beneficiários do dinheiro da conta secreta está Robson Marinho, o conselheiro do Tribunal de Contas que foi homem da estrita confiança e coordenador de campanha do ex-governador tucano Mário Covas. Da “Marília” também saíram recursos para contas das empresas de Arthur Teixeira e José Geraldo Villas Boas, lobistas que serviam de intermediários para a propina paga aos tucanos pelas multinacionais francesa e alemã.
A escapada pelos andes
La Paz, sexta-feira 23 de agosto, 15h. O sol a pino e a baixa umidade reforçam a sensação térmica da primavera boliviana e embalam a tradicional sesta local. No horário em que boa parte dos moradores está cochilando, as ruas livres do tráfego servem como corredor de fuga a dois veículos 4×4 Nissan Patrol, com placas diplomáticas. A bordo de um deles, o senador boliviano Roger Pinto Molina confere o relógio e olha para o alto com um leve sorriso de satisfação. “Foi a primeira vez que pude ver o sol claramente. E de uma perspectiva diferente”, lembra, em referência aos 454 dias que passou asilado numa pequena sala da embaixada do Brasil. Durante esse tempo, Molina jamais teve direito a um salvo-conduto, documento legal que poderia ter sido fornecido pelo governo boliviano para garantir sua saída com tranquilidade em direção ao país no qual decidiu se refugiar. Planejada ao longo de três meses, com o conhecimento de algumas autoridades do governo brasileiro e uma mal disfarçada tolerância do governo do presidente Evo Morales, que enviou vários sinais a Brasília de que não faria oposição à saída de Molina, desde que não pudesse ser acusado de proteger um inimigo com 22 processos no currículo, a “operación libertad” foi cercada de uma série de preparativos, inclusive medidas de proteção pessoal e monitoramento de riscos. No momento em que se preparava para entrar no automóvel, Molina contou com o auxílio de um fuzileiro naval, adido militar na embaixada, para vestir o colete à prova de balas.
Três dias antes de partir, Roger Molina falou do plano de fuga à sua filha Denise Pinto Bardales, carinhosamente chamada pelo pai de “Talita”, sugerindo que ela fosse para Brasileia, no Acre, onde a mãe, Blanca, vive há um ano com as outras duas filhas do senador, um genro e quatro netos menores de idade. Num gesto revelador das relações próximas entre autoridades dos dois países, a família Molina foi abrigada no Brasil pelo governador Tião Viana (PT/AC), seu amigo. Além de Talita, sabiam da “operación libertad” o embaixador Marcelo Biato, o conselheiro Manuel Montenegro e o encarregado de negócios da embaixada Eduardo Saboia, que assumiu a responsabilidade pela fase final da operação, que era retirar Molina da Bolívia e levá-lo, são e salvo, para o Brasil.
Há pelo menos um mês, a operação chegou aos ouvidos de políticos, advogados e empresários que partilham informações e interesses nas relações entre Brasil e Bolívia. Um plano alternativo chegou a ser elaborado, na verdade, envolvendo uma operação triangular. Numa primeira etapa, Molina seria levado de avião para o Peru. Depois, seria conduzido ao Brasil. Ao verificar que o envolvimento de um país que nada tinha a ver o caso poderia ampliar as complicações de um plano já complicado, decidiu-se pela viagem de automóvel entre La Paz e Corumbá.
Escondidos na neblina Na segunda-feira 19, num gesto que seus superiores no Itamaraty interpretariam como bisonha tentativa de despistar sua participação na operação, o embaixador Biato saiu de férias e coube a Saboia organizar todos os detalhes finais e fazer a viagem. Na quinta-feira 22, dia anterior à fuga, Molina recebeu a visita de um médico do Senado boliviano, que produziu um laudo atestando que ele enfrentava problemas de saúde, inclusive depressão. Substituindo Biato em sua ausência, naquele mesmo dia, Eduardo Saboia enviou uma cópia do laudo para o Itamaraty e, no mesmo despacho, observou que a situação pedia uma intervenção sem demora em auxílio do senador, afirmação vista como uma senha para o início da “operación libertad.”
Ao deixar, na sexta-feira 23, a garagem do edifício Multicentro, complexo empresarial onde funciona a sede diplomática brasileira, o comboio seguiu em velocidade pela avenida Arce rumo à autopista El Alto, na saída da capital boliviana. A orientação era fazer meia-volta e retornar à embaixada ao menor sinal de que autoridades bolivianas pretendessem criar embaraços ao comboio.
Lembrando que chegou a passar mal no trajeto, Molina conta: “Se eu fosse para um hospital, corria o risco de ser preso. Então decidimos seguir”. Depois de seis horas de estrada, o grupo chegou a Cochabamba, na região do Chapare, uma das principais bases eleitorais do presidente Evo Morales. Ali, milhares de famílias de agricultores plantam a folha da coca, tradicional ingrediente da cultura boliviana, que em grande parte é desviada para servir ao narcotráfico. Em Cochabamba, a avenida Blanco Galindo corta a cidade. O comboio levou três horas para atravessar a região, sob neblina espessa. A tensão não deixava ninguém cochilar. “Se fossemos detidos ali, seria a morte ou algo parecido”, afirma o senador. Em mais de um contato com o governo brasileiro, quando enviou uma emissária em audiência com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o governo de Evo Morales já havia deixado claro que gostaria de ver Roger Molina fora do País, desde que jamais pudesse ser acusado por seus próprios eleitores de proteger um político acusado de corrupção pela Justiça. “É loucura!”, reagiu Dilma ao ser consultada sobre a operação, deixando claro que o Brasil não poderia aceitar uma proposta que não tinha garantia contra riscos, inclusive possíveis ameaças à vida de Molina. Convencida de que o governo brasileiro fizera sua parte, ao garantir asilo para o senador boliviano, Dilma esperava que, incomodado com o desgaste que Molina causava a Morales, este tomasse a única medida cabível, que era dar o salvo-conduto.
Fugitivos de fraldas Pano de fundo daquela viagem dramática, as relações entre Dilma e Evo Morales atingiram um momento especial quando ambos se encontraram durante uma viagem à África. Evo pediu uma “bilateral” à presidenta brasileira e aproveitou o encontro para denunciar que o senador estava tendo um comportamento inapropriado, chegando a fazer reuniões políticas. Em seguida, Dilma determinou ao chanceler Antonio Patriota que verificasse as queixas de Morales, pedindo ao ministro que se encarregasse pessoalmente de resolver o caso com as autoridades bolivianas. Quan­­­­do Patriota lhe disse que pretendia escolher um responsável para tocar a missão, Dilma reagiu de forma dura, conforme relatou um assessor palaciano: “Você deve cuidar de tudo pessoalmente”.
Terrorismo inglês
Não tinha mais do que sete metros quadrados a sala branca e sem janelas em que o estudante carioca David Miranda ficou confinado nas quase nove horas em que permaneceu detido no Aeroporto de Heathrow, em Londres, no domingo 18. Em escala na capital britânica, Miranda voava de Berlim com destino ao Rio de Janeiro. Logo no desembarque, foi abordado por policiais. “Me levaram para essa sala onde não pude falar com ninguém”, disse à ISTOÉ (leia entrevista). O contato com um advogado só aconteceu oito horas depois. Àquela altura, seu companheiro, o jornalista americano Glenn Greenwald, com quem é casado há nove anos, já havia mobilizado o governo brasileiro por sua liberdade. Mais do que um repórter radicado no Brasil, Greenwald está por trás da série de artigos publicada, desde junho, pelo jornal britânico “The Guardian” e que revelou o amplo esquema de espionagem de cidadãos promovido pela Agência de Segurança dos Estados Unidos. Incapazes de calar Greenwald, os britânicos foram atrás de um alvo fácil com o lamentável propósito de intimar.
Para sair do isolamento
Conhecido por sua capacidade de dialogar com trabalhadores em portas de fábrica e cidadãos do País inteiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também tem dedicado seu reconhecido talento para o diálogo para auxiliar a presidenta Dilma Rousseff em conversas com empresários. Apenas na semana passada, Lula manteve quatro encontros com donos de empresas de porte. Ouviu críticas à falta de um bom canal de comunicação com o Planalto e os ministros. Também escutou queixas de setores específicos da economia, que se mostram inconformados por levarem sugestões e propostas concretas para Brasília e aguardarem meses para obter uma resposta que demora demais para chegar – e muitas vezes nunca chega. Conforme relato de dois empresários que participaram de dois encontros diferentes, Lula faz o possível para ouvir e repassar reclamações que possam ser úteis para o governo.
O nobre colega presidiário
Com bottom de parlamentar, terno bem alinhado e algemas, o deputado Natan Donadon deixou a Câmara dos Deputados na noite de quarta-feira 28 do mesmo modo que entrou: como um inusitado detento com mandato parlamentar. Durante a votação do pedido de sua cassação, muitos colegas não se preocuparam com sua ficha corrida, que inclui a condenação pelo desvio de R$ 8,4 milhões da Assembleia Legislativa de Rondônia, de 1995 a 1998, quando era diretor financeiro da instituição. O rosto abatido e as lamentações da vida de presidiário que rechearam o discurso de Donadon comoveram parte do plenário, naquela altura já contaminado pelo espírito de corpo.
O conforto covarde do sigilo do voto serviu como mais um estímulo para que centenas de colegas se sentissem ainda mais à vontade para salvar o mandato do parlamentar, que cumpre pena na Penitenciária da Papuda, Distrito Federal, há dois meses. No total, foram 233 votos pela cassação, 24 a menos do que o exigido, 131 pela absolvição e 41 abstenções, sendo o PT o partido que mais contribuiu com as ausências, (21 no total). O resultado, além de representar uma afronta à sociedade, no rastro das manifestações populares, sugere a intenção de se preservar os mandatos de condenados no processo do mensalão.
Época
Roger Pinto Molina: “Quero levar minha vida no Brasil”
O senador boliviano Roger Pinto Molina, de 53 anos, líder da oposição ao governo Evo Morales, repete insistentemente sua gratidão à presidente Dilma Rousseff pelo asilo que recebeu na embaixada brasileira em La Paz. O discurso de Molina contrasta com a recepção que o governo lhe reservou nesta semana, quando chegou a questionar sua permanência no Brasil. Molina foi o personagem central da crise política que redundou na demissão do ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota. “Já agradeci à presidente Dilma Rousseff pelo ato generoso de me conceder asilo”, afirmou em entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA – O senhor se considera um perseguido político?
Roger Pinto Molina – Sim, mas não sou o único na Bolívia. Sou o líder da minha região (Estado de Pando) e líder da oposição no Senado. O modelo de poder de Evo Morales é de tomada de controle total do Senado. Foi aí que começou nosso confronto político. Os ex-presidentes, ex-governadores, ex-prefeitos, quem teve algum tipo de liderança é hoje processado judicialmente. Os processos atingem, sobretudo, quem tem viabilidade eleitoral. Não sou exceção. Mas só busquei asilo porque sofri ameaças de morte.
ÉPOCA – Como as perseguições começaram?
Molina – A primeira fase das perseguições começou com as mortes no departamento (Estado) de Pando, em setembro de 2008. Quando apresentei a documentação sobre o assunto, o presidente ordenou minha prisão e abriu oito processos por desacato. Isso só aconteceu porque denunciei atos de corrupção. Disse publicamente no Senado que o narcotráfico infiltrou-se no governo. Apresentei provas disso. Pedi que investigassem o ministro (da Presidência, Juan Ramón) Quintana e o vice-presidente da República. O presidente deveria levar adiante uma investigação. Mas isso não aconteceu. Fiz uma série de denúncias contra outros ministros. Denunciei o ministro da Fazenda pelo seu envolvimento com os bicheiros. Era senador e tinha direito de denunciá-los. O governo Evo, no entanto, acreditava que eu só poderia fazer denúncias em casa, para minha família, e não na imprensa. Minhas denúncias geraram um rosário de calúnias. Tive acesso a uma documentação que mostra que o ministro Quintana foi à casa de um narcotraficante para receber recursos para sua campanha. Todas as ameaças de morte tiveram origem no governo.
ÉPOCA – De que tipo? O senhor foi alvo de algum atentado?
Molina – Não. Muitas das ameaças que sofri foram gravadas. Estão documentadas. Há gravações em que dizem até a arma com que me assassinariam. Em 2009, antes de eu fazer minhas denúncias, descobriu-se uma tentativa de assassinato. Quintana ofereceu U$ 20 mil a um assassino de aluguel para me matar com arma que lhe fora entregue por ele mesmo. Denunciei e o governo não fez nada. Logo depois, descobriram um assassino do PCC (Primeiro Comando da Capital), ligado ao ministro Quintana, que pretendia me eliminar no portão de casa. Isso tudo está registrado no jornal Sol de Pando. Uma vez, resgataram um cidadão que fora sequestrado. No cativeiro em que foi mantido, encontraram a planta da minha casa, documentos, fotos de meu carro. Os sequestradores foram presos. No interrogatório, afirmaram que eu estava na lista deles. E era gente que tinha relação com o governo.
ÉPOCA – Quando começou seu confronto com o governo boliviano?
Molina – Minha diferença com o governo Evo Morales vem de muito tempo. Estou convencido de que a coca é a matéria-prima do narcotráfico. Por isso, defendo a erradicação da coca. Um compromisso estabelecido em lei prevê que uma área de 12 mil hectares seria mantida para preservar a produção de coca necessária para o consumo tradicional. Mas a área plantada chegava a quase 40 mil hectares. Todo excedente é destinado ao narcotráfico. Ora, os cocaleiros constituem a base social e política do presidente, que preside as seis federações de trabalhadores do setor. Então, sua base era fornecedora do narcotráfico. Ele sempre foi tolerante com os produtores de coca. Sempre dissemos que, em algum momento, o tênue limite entre a produção de folhas de coca e de matéria-prima para o narcotráfico seria ultrapassada. Foi o que aconteceu. Nós temos informação de que o setor cocaleiro financiou as campanhas do presidente Evo Morales. Denunciei isso e criaram-se situações de confronto. Em determinado momento, chegamos a descobrir uma série de documentos que estabelecia uma relação de funcionários do governo com o narcotráfico.
ÉPOCA – O governo Morales diz que o senhor não é um perseguido político, mas um criminoso condenado. O que tem a dizer sobre isso?
Molina – Há 22 processos de todos os tipos contra mim. Só um foi julgado, de corrupção. Quando governei (o Estado de) Pando, criei uma universidade e atraí investimentos privados para ela. Ora, corrupção é quando você tira dinheiro do Estado. O que fizemos foi dar dinheiro ao Estado. Existe uma Zona Franca em Pando, onde os empresários pagavam uma alíquota de 1% para se instalar. O que fizemos foi propor a eles que pagassem 1,5%. O 0,5% a mais seria destinado à universidade. Os empresários aceitaram. Mas sob a visão do governo, isso é corrupção. Dos oito que assinaram a resolução para criar a universidade, só eu fui sentenciado, e à revelia, sem defesa, a um ano de prisão. Esse é o único processo julgado.
ÉPOCA – Por que o senhor pediu asilo à embaixada brasileira, e não a outra representação diplomática?
Molina – Há uma relação mais direta do Brasil com a Bolívia. O Brasil tem uma longa tradição de respeito à vida, aos direitos humanos, aos direitos dos asilados.
ÉPOCA – O senhor negociou com os diplomatas brasileiros seu asilo na embaixada em La Paz antes de pedir refúgio?
Molina – Não, nem houve nenhuma possibilidade de isso acontecer. Foi decisão tomada diante de uma emergência. Eu temia ser assassinado a qualquer momento. Procurei a embaixada do Brasil sem nenhum diálogo prévio e fui recebido por um homem de princípios, o embaixador Marcel Biato. Ele assumiu meu caso de maneira profissional. Levando em conta que precisava informar seu país, solicitou a documentação dos processos judiciais a que respondo. Depois de analisar os documentos, me concedeu o refúgio, sob o crivo da presidente (Dilma Rousseff). Por um descumprimento dos tratados e das leis internacionais, a Bolívia nunca me outorgou salvo-conduto para deixar o país. E isso é o que se deve a qualquer cidadão que obtém asilo diplomático.
ÉPOCA – O senhor pretende ficar no Brasil ou cogita pedir asilo definitivo a outras nações?
Molina – Quero regularizar minha situação no Brasil e levar minha vida aqui da maneira mais normal possível. Quando entrei na embaixada brasileira, pessoas próximas ao governo boliviano tentaram queimar minha casa e sequestrar minha família. Eles tiveram de abandonar a Bolívia. Saíram em busca de refúgio com o que tinham à mão. Hoje, vivem aqui. Já agradeci à presidente Dilma Rousseff pelo ato generoso de me conceder asilo e me dar as garantias necessárias para dar início à próxima etapa da minha vida. O que espero, agora, é superar esta etapa. Espero não ter nunca a necessidade de buscar outra alternativa.
As faculdades brasileiras estão na UTI
Durante dois anos e meio, a mineira Izabela Carvalhal, de 22 anos, frequentou um cursinho pré-vestibular para garantir uma vaga no curso de medicina da Universidade Gama Filho, então uma das mais conceituadas instituições privadas de ensino no Rio de Janeiro. Aprovada no vestibular de julho de 2011, Izabela fez as malas e desembarcou no campus do bairro de Piedade, onde a Gama Filho forma médicos desde 1965. Na manhã da última quinta-feira, Izabela assistia a uma aula de cardiologia de forma improvisada, no pátio da universidade. A derrocada do sonho de Izabela começou no final de 2011, quando o grupo Galileo Educacional assumiu a administração da Gama Filho. Com a promessa de reerguer uma universidade endividada, os novos gestores demitiram 600 funcionários e aumentaram o valor das mensalidades – a de medicina subiu de R$ 2.700 para R$ 3.500 mensais.
O efeito das medidas foi desastroso. Cresceram a inadimplência e a evasão de alunos.  Professores e funcionários entraram em greve por atraso nos salários. No início de agosto, os alunos encontraram um aviso no portão: a Gama Filho estava fechada e as provas adiadas. O Ministério da Educação suspendeu os vestibulares. Desde então, 30 estudantes ocupam a sala da reitoria. Izabela não sabe se conseguirá o diploma. Nem ela nem nenhum dos cerca de 2.100 alunos do curso.
Por 40 anos, os alunos da Gama Filho tiveram aulas práticas na Santa Casa do Rio de Janeiro, hospital com mais de 500 leitos. No final de 2011, a direção da universidade demitiu 140 professores que também eram médicos do hospital. Seria o fim do ensino prático, se 40 professores não tivessem decidido trabalhar de graça para socorrer os alunos. A Gama Filho ofereceu como alternativa um pequeno hospital de 40 leitos, na Barra da Tijuca. Havia mais alunos de medicina que pacientes, e o projeto foi abandonado. Hoje, os alunos têm aulas práticas no hospital municipal de Piedade.
“Nessa crise, por dó, a prefeitura ainda deixa os alunos estudar no hospital”, diz a estudante Fernanda Lopes Moreira. Até 2010, antes da crise, o curso de medicina da Gama Filho tinha nota 3, numa escala que vai de 1 a 5, no Conceito Preliminar de Curso (CPC) do Ministério da Educação. Chegou a ser um dos mais concorridos entre as faculdades privadas do Rio. Se fosse realizada uma nova avaliação neste ano, o conceito da Gama Filho certamente despencaria. A direção da faculdade diz que resolverá os problemas de caixa até setembro, quando pretende retomar as aulas.
O caso da Gama Filho é um exemplo extremo e dramático dos problemas sérios que envolvem a formação dos médicos no Brasil. Nas últimas semanas, o país debate a chegada de profissionais estrangeiros, a maioria cubanos, para trabalhar em locais distantes, onde não há profissionais. A solução, já adotada pelo Brasil no passado e por países como o Canadá, pode resolver um problema emergencial de falta de profissionais. Mas escamoteia um problema maior, estrutural, que se reflete na saúde pública nacional: a qualidade da formação dos médicos.

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